O PARADIGMA ENTRE DIREITOS HUMANOS E A CRISE MIGRATÓRIA:
DIÁLOGOS EM HANNAH ARENDT[1]
Daniele Lopes Oliveira[2]
Milton Justus[3]
Resumo: Arendt estudiosa política do século XX anteviu o paradigma insolucionável entre direitos humanos e a questão dos apátridas. Contrariando o universalismo apregoado por Kant. A autora concluiu que para aqueles que não tem pátria, não há cidadania, nem direitos e, portanto, as garantias são mínimas para àqueles que não são cidadãos. Na atualidade percebemos uma nova e grande crise migratória que evoca questões,que ainda, carecem de respostas, e precisamos retomar a essa antiga discussão para repensar a questão atual da crise migratória no mundo, que atinge um grande número de pessoas que nascem em campos de refugiados, sem identidade, país e, portanto, sem direitos. Resta-lhes o apoio da fé para suportar a falta de cidadania e dignidade.
Palavras-chave: crise migratória, direitos humanos, jus naturalismo, política e cidadania.
Introdução
As questões migratórias vêm chamando a atenção nos últimos anos, principalmente pelo volume de pessoas que tem buscado refúgio em outros países.
De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil no ano de 2017, saiu do vigésimo sexto lugar para o décimo sétimo, subindo nove posições no ranking. Totalizando noventa e nove mil imigrantes. O país que mais recebeu brasileiros foi Portugal. Os brasileiros que buscam outros países, em sua grande maioria buscam oportunidades de emprego e estudo.
No ano de 2019 os imigrantes chegaram a duzentos e setenta e dois milhões de acordo com os dados da Organização das Nações Unidas (ONU).
A população de imigrantes cresceu mais que a população mundial. O número global de refugiados e requerentes de asilo também aumentou cerca de treze milhões, entre o ano de 2010 e 2017. Do total de trinta e oito milhões de imigrantes, um em cada sete tem menos de vinte anos de idade. Desde total, vinte e dois por cento vieram para a América Latina. (ONU, 2019).
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019), estima que, até o final de 2018, mais 9,7 mil venezuelanos imigrem para o Brasil. Para 2019, o órgão projeta a entrada de outros 15,6 mil.Estes vêm para o Brasil fugindo da fome, desemprego e das duras condições econômicas impostas aos cidadãos.
Na grande maioria das cidades brasileiras não há nenhum tipo de instrumento para auxílio a estrangeiros que buscam refúgio no país.
Entre 2010 e 2018, estima-se que cerca de 500 mil imigrantes deram entrada no país. Um levantamento inédito realizado pelo IBGE (2019), revela a baixa oferta de apoio governamental a imigrantes e refugiados que buscam asilo no Brasil. A pesquisa, mostra que apenas 215 cidades oferecem algum tipo de serviço específico para essa população. O IBGE (2019), ressaltou que “as migrações internacionais são parte constituinte da formação histórica e social do Brasil” e que, nos últimos anos, ganhou outro perfil.
Diferente do que aconteceu na época do Brasil Império e na primeira metade do século XX, quando milhões de estrangeiros vieram ao país, entre 1980 e o final dos anos 2000, mais pessoas saíram do que entraram. Muitos brasileiros emigraram para os Estados Unidos, Japão, Portugal, Espanha e Reino Unido, entre outros.
A chegada de migrantes ao território brasileiro voltou a ocorrer de forma intensa a partir do final da primeira década do ano 2000 influenciada, pelas crises político-econômica e climática no Haiti, mudanças na economia da China, estreitamento de laços com países africanos, o conflito na Síria e, mais recentemente, a profunda crise econômica da Venezuela.
De acordo com o IBGE (2019), e dados da Polícia Federal (2019), há presença de imigrantes e/ou refugiados em 3.876 dos 5.568 municípios brasileiros. Entre 2010 e 2018, foram registrados mais de 466 mil migrantes no país, além de 116,4 mil pedidos de refúgio. Pedidos de refúgio de venezuelanos ao Brasil crescem 245% em um ano. O total de pessoas deslocadas no mundo passa de 70 milhões, de acordo com a ONU (2019). Mais de 30% dos refugiados no Brasil têm ensino superior, diz pesquisa da ONU (2019). “Os migrantes em geral, possuem nível médio de escolaridade, se inserem nos estratos inferiores da estrutura ocupacional, não dominam outro idioma além do nativo e chegam em situação de maior vulnerabilidade social e econômica” IBGE (2019).
O que demanda políticas públicas de acolhimento e integração à sociedade brasileira.
Apesquisa realizada pelo IBGE (2019), buscou investigar o acolhimento aos imigrantes previsto na nova Lei de Migração, promulgada em maio de 2017, e de modo geral, o IBGE constatou fragilidade na execução desta política.“Deficiências são observadas, como, por exemplo, no ensino do idioma, requisito prioritário como porta de acesso à plena integração; no acesso aos serviços sociais públicos; na inserção ocupacional, que via de regra está aquém das habilidades e qualificações; e na garantia à moradia adequada, entre outras limitações. E ainda apontou que dentre as 3.876 cidades onde há presença de imigrantes, apenas 215, em 5,5% delas, contavam com pelo menos um serviço de apoio previsto na política migratória do país associação ou coletivo para relacionamento com o poder público, curso de português, atendimento multilíngue nos serviços públicos, abrigo para acolhimento, centro de referência e apoio, formação/capacitação profissional.O IBGE (2019), destacou que um dos principais instrumentos para integração de imigrantes e refugiados é a associação ou coletivo desse grupo, devido à sua capilaridade para articulação com o poder público. Eles estão presentes em apenas 81 (oitenta e uma) cidades onde há presença de imigrantes ou refugiados.“Como os migrantes e refugiados não têm direito à participação política, quer dizer, votar ou ser votado em eleições proporcionais ou majoritárias, a organização em associações ou coletivos é o espaço do exercício democrático junto às instâncias de poder”.
A pesquisa chamou a atenção para a distribuição espacial destas associações e/ou coletivos, que se concentram, sobretudo, na região Sul do país. Do total de 81 (oitenta e uma) associações, 44 (quarenta e quatro) estão na Região Sul. O Sudeste sedia 23 (vinte e três), o Centro-Oeste, 6 (seis), o Nordeste, 5, e o Norte, apenas 3. Dentre as capitais que têm volume significativa de população migrante e/ou refugiada, o IBGE (2019), destacou que:São Paulo, embora mantenha programa de formação e capacitação de servidores voltado ao atendimento de imigrantes e pessoas em situação de refúgio ou asilo humanitário, ainda não implantou o atendimento multilíngue. No Rio de Janeiro, tem relacionamento com as associações ou coletivos de imigrantes e pessoas em situação de refúgio ou asilo humanitário, além de oferecer cursos de idioma. Brasília só oferece abrigo. Boa Vista promove a cooperação com a União, oferece abrigo e mantém um Centro de Referência e Apoio a Imigrantes. Em relação aos mecanismos de cooperação. Conforme enfatizou o IBGE (2019), a gestão migratória deve ser de responsabilidade das três esferas de poder, através de mecanismos de cooperação, com o ente federal gerindo as entradas e saídas, a regularização/regulação dos migrantes/refugiados e a cooperação internacional. Já a oferta de serviços, como o ensino do idioma, a geração de trabalho e renda, a oferta de moradia, devido à proximidade, deve ser ditada pelos estados e municípios, mas com suporte federal.Das 27 unidades da federação do país, nove não possuem nenhum tipo de mecanismo de cooperação na gestão migratória. São elas Rondônia, Amapá, Tocantins, Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, Alagoas, Mato Grosso e Distrito Federal. “Neles, é importante ressaltar, a presença de migrantes/refugiados é diminuta”, ponderou o IBGE (2019).Em nível municipal, são apenas 75 (setenta e cinco) os municípios, concentrados nas Regiões Sul e Sudeste, que possuem instrumentos de cooperação. Em 53 (cinquenta e três) deles, a cooperação é feita com o estado, em 43 (quarenta e três), com a União, e 21 (vinte e um) estabelecidos com os dois entes federados.“Epitaciolândia, Manaus, Presidente Figueiredo, Boa Vista, Normandia e Pacaraima, localizados na Região Norte e que, recentemente, receberam correntes migratórias oriundas do Haiti e da Venezuela, estabeleceram cooperação ao menos com um ente federado”, ressaltou o IBGE (2019). Apenas 48 (quarenta e oito) municípios, distribuídos em 11 (onze) das 27 (vinte e sete) unidades da federação, oferecem ensino de português a migrantes e refugiados, apontou o levantamento do IBGE (2019). A maioria destas cidades se concentram em Santa Catarina quando, segundo a pesquisa, “a população de migrantes e refugiados se concentra nos Estados do Amazonas, Roraima, Rio de Janeiro e São Paulo”.“Não dominar o idioma do país de destino é um dificultador para além da comunicação cotidiana, pois prejudica o acesso ao mercado de trabalho e aos serviços públicos”, enfatizou o IBGE (2019).O órgão ressaltou, ainda, que “Unidades da Federação com importante presença de migrantes e refugiados sem a oferta de tais cursos acabam por gerar um complicador na gestão da questão migratória, como é o caso de Roraima. ”
Observando o quadro brasileiro para os imigrantes, questiona-se o cumprimento dos Direitos Humanos e sua efetivação. A proteção aos refugiados é uma questão fundamental de direitos humanos. Trata-se de garantir a cada pessoas os direitos inerentes à própria condição humana, enquanto seu país de origem não foi capaz de garanti-los. O artigo 1º da Lei n.º 9.474 de 22 de julho de 1997, Lei Brasileira de Refúgio, define três hipóteses para reconhecimento da condição de refugiado:
Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:
I – Devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;
II – Não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;
III – Devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país (BRASIL, 1997).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), estabelece a condição dos refugiados e o dever de ampará-los. Afirmando que é um dos mais relevantes temas da pauta política presente. Em sua essência a Declaração visou garantir para qualquer ser humano, em qualquer país do mundo e sob quaisquer circunstâncias, condições básicas de sobrevivência em ambiente de respeito e paz, igualdade e liberdade. Conforme o disposto no Artigo 14. Este artigo assegura o direito de buscar e de gozar asilo em caso de perseguição:
Toda pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países.
Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos propósitos e princípios das Nações Unidas (DECLARAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS, 1948)..
Contudo, essa proteção, provou não ser plena. E infelizmente o direito de buscar asilo, demonstrou não ser uma tarefa integral em sua execução. O Artigo 14 deixa transparente que pessoas não podem receber asilo tão somente para evitar perseguição por “crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas”. Assim, praticantes de crimes de guerra e pessoas consideradas culpadas por crimes contra a paz e contra a humanidade, não possuem direito a asilo.Para desempenhar o direito estruturado no Artigo 14, as pessoas devem efetivamente entrar em outro país, e, atualmente, países de todo o mundo estão dificultando o ingresso, afastando refugiados e outros migrantes por meio de cercas de arame, muros exércitos entre outros meios.
I.O Paradigma entre Direitos Humanos e a Crise Migratória: Diálogos em Hannah Arendt
Dialogando com a obra de Arendt (1951), percebe-se o paradigma insolúvel entre os Direitos Humanos e a questão dos apátridas. Os apátridas são aqueles que pelos fluxos imigratórios vagam de um país a outro fugindo das guerras, fomes, perseguições políticas, religiosas e étnicas, mas que não tem cidadania e, portanto, ficam excluídos da comunidade política.
Arendt encara de forma ontologicamente complexa e rica nas suas particularidades e contingências. E na sua proposta de reconstrução, em que se baseia numa retomada crítica do pensamento ocidental, almejando o exame das “condições políticas e jurídicas que permitam assegurar um mundo comum, assinalado pela pluralidade e pela diversidade e vivificado pela criatividade do novo, que através do exercício da liberdade, que está ao alcance dos seres humanos, impeça a reconstituição de um novo estado totalitário de natureza»(LAFER,1988, p. 15).
São reais os riscos de reconstituição de um «estado totalitário de natureza», cuja emergência configurou a ruptura, com a qual Hannah Arendt, enquanto “ouriço, preocupou-se centripetamente, e à qual ela reagiu como raposa, afirmando a importância, para a dignidade humana, do pluralismo centrífugo de um mundo assinalado pela diversidade e pela liberdade” (LAFER,1988, p. 15).
Com efeito, continuam a persistir no mundo contemporâneo situações sociais, políticas e econômicas que contribuem para tornar os homens supérfluos e sem lugar num mundo comum.
A ubiquidade da pobreza e da miséria, assim como a da ameaça demográfica e a descoberta das técnicas de automação que podem tornar segmentos da população descartáveis do ponto de vista da produção são situações que evidenciam, a relevância e a atualidade das preocupações de Arendt (LAFER,1988, p. 16).
Daí o interesse de um diálogo com o seu pensamento para uma reflexão sobre as condições dos apátridas na modernidade.
Arendt não elaborou e nem teve, o seu percurso, como um quadro de referência para repensar a reconstrução dos direitos humanos, numa época em que os homens em geral têm múltiplas razões para não se sentir nem à vontade nem em casa no mundo.
O Direito Natural se contrapõe ao Direito Positivo, localizado no tempo e no espaço, e funciona, neste paradigma, como um ponto de Arquimedes para a análise meta jurídica: tem como pressuposto a ideia de imutabilidade de certos princípios, que escapam à História, e a universalidade destes princípios, que transcendem a Geografia. A estes princípios, que são dados e não postos por convenção, os homens têm acesso através da razão comum a todos, e são estes princípios que permitem qualificar as condutas humanas como boas ou más uma qualificação que promove uma contínua vinculação entre norma e valor e, portanto, entre Direito e Moral.No mundo moderno o paradigma do Direito Natural foi capaz de lidar, até o século XVIII, como problemas da crescente secularização, sistematização, positivação e historicização do Direito, mas a intensidade destes processos levou à sua erosão. Daí o aparecimento de um novo paradigma: o da Filosofia do Direito(LAFER,1988, p. 16).
As bases na qual se assentava o Direito, principalmente o Direito Positivo, tiveram que ser discutidas e reelaboradas após as tragédias do Século XX, principalmente após a desapropriação, condenação e morte de milhares de judeus, em que tribunais, juízes, advogados e promotores “cumpriram a lei”, e de “forma legítima”, enviaram pessoas para a morte amparadas em sua legislação. No caso, o próprio Adolf Eichmann, burocrata alemão, que não matou, com suas próprias mãos, mas sob suas ordens enviou milhares de judeus para a Solução Final. E que se julgava inocente. Assim ao final do século XX, a ideia de direitos inatos, tidos como uma verdade evidente, que seriam a medida da comunidade política, mas que dela independeriam, e o próprio Direito tiveram que ser repensados.
Na reflexão sobre o genocídio, a análise empreendida por Arendt, sobre o processo Eichmann e as posições da promotoria, da defesa e os fundamentos da sentença, sublinha, em que medida, por se basearem em categorias jurídicas tradicionais, que seguiam a lógica do razoável, foram insuficientes para lidar com a não-razoabilidade do crime do genocídio. O crime cometido por Eichmann foi contra a humanidade porque é uma recusa frontal da diversidade e da pluralidade, características da condição humana na proposta arendtiana.
Fundamento a repressão ao genocídio na análise arendtiana da condição humana e nos princípios kantianos, por ela esposados, da hospitalidade universal e da confiança recíproca, articulados no Projeto de Paz Perpétua. Explicito, assim, que a hospitalidade universal é um princípio de jus cogens de ordem internacional, pois o fato do genocídio ter ocorrido é um precedente que ameaça à ordem pública internacional. Nenhum povo da terra pode sentir-se razoavelmente seguro de sua existência e sobrevivência e, portanto, à vontade e em casa no mundo, na medida em que se admite o genocídio como uma possibilidade futura, pois esta possibilidade compromete o também kantiano princípio da confiança recíproca (LAFER,1988, p. 23).
O totalitarismo, na exata medida em que, representou uma proposta de organização do Estado e da Sociedade, que escapa ao bom senso de qualquer critério razoável de Justiça, recolocou- em novos termos o tema clássico da resistência à opressão.
Não é possível deixar de considerar a importância das contribuições de Immanuel Kant na sua formulação e reconhecimento dos Direitos Fundamentais da Pessoa Humana como um divisor no pensamento moderno. Em sua Obra Crítica da Razão Pura, Kant combina o “pluralismo”, com uma “ética da liberdade”, isto é, “existe, em cada ser humano racional, um imperativo categórico, que convoca todo ser humano a respeitar a sua própria liberdade e a dos outros” (1974, p. 27). Diante disso, a ação do homem passa a ter um “norte”, ou seja: “age somente, segundo uma máxima tal, que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei Universal”. Em seu livro Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1795), Kant coloca o problema da Ética como problema do bem supremo. Assim, com essa definição, Kant considera que tal princípio se torna uma ética da liberdade responsável pelo mérito de exigir dos seres humanos um respeito mútuo para uma (co) existência na Sociedade. Deste modo, “há um imperativo que, sem tomar por fundamento como condição qualquer outra intenção a se alcançar por um certo comportamento, comanda imediatamente esse comportamento. Esse imperativo é categórico”. Constata-se que o filósofo elabora um conceito de um imperativo categórico para fundamentar sua ética, um imperativo, que mande sem condições, absolutamente: um “tu deves”, dusollst incontestável e incontornável. Trata-se, pois, de um imperativo que implica em si mesmo sua obrigatoriedade absoluta. É o dever simples e puro que apela à boa vontade. Tal raciocínio deixa patente que Kant buscou elaborar uma “ética do dever ser”, ou seja: uma ética imperativa, que obrigue.
De forma resumida Kant dedicou boa parte dos seus estudos à função prática da razão e ao problema da moral, impondo-se quatro problemas fundamentais:
Determinar o conceito de moralidade;
Aplicá-lo à situação de entes racionais finitos, o que leva ao imperativo categórico;
Descobrir a origem da moralidade na autonomia da vontade; e
Provar a efetividade da moralidade com o factum da razão.
Não há como olvidar que essas premissas filosóficas são pilares da Declaração Universal dos Direitos Humanos, publicada pela resolução 217 A terceira da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, fruto de um período extremamente conturbado das relações internacionais até meados do século XX, no contexto das duas grandes guerras, os vários governos totalitários, a descolonização afro-asiática e a crise dos paradigmas políticos internacionais. Este documento traz ao seu total 30 artigos com o objetivo de manter os princípios básicos que todo ser humano carrega. Aliás, o pensamento kantiano já se apresenta, como pano de fundo, logo nas primeiras linhas de seu Preâmbulo sustentando a “sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres”.
Assim, o Preâmbulo deixa claro sua tradição e orientação Ocidental cunhado pela tradição revolucionária francesa (que teoricamente introduziu as noções de liberdade e igualdade em dignidade e direitos), além do exercício racional para agir conforme os imperativos éticos e morais, trazidos por Kant. Igualmente importante é o conceito de modelo de convivência internacional proposto por Kant que transcende o subjetivismo das soberanias e dos interesses, introduzindo a razão abrangente do ponto de vista da humanidade e do indivíduo como fim e não como meio o que possibilitou a discussão acerca dos “temas globais” na prática diplomática contemporânea. Deste modo, é importante reter que os Direitos Humanos quando são aviltados ou suprimidos apresentam, como consequência, retrocessos à criação de uma sociedade internacional que respeite a diversidade cultural e crie maneiras de coexistência entre os povos.
No entanto, Arendt crítica, Kant e a própria Declaração dos Direitos Humanos, pois embora o tratado demonstre boa-fé, ele, contudo não consegue concretizar no plano prático aquilo que propõe.
A positivação das declarações de Direitos Humanos, nas constituições, tinha como objetivo conferir segurança aos direitos nelas contemplados, para tornar aceitável pela sociedade a variabilidade do Direito Positivo, requerida pelas necessidades da gestão do mundo moderno. Realço que o processo de positivação não desempenhou esta função a que aspirava o paradigma do Direito Natural, na vertente moderna, pois o elenco dos direitos do homem contemplados pelo Direito Positivo foi-se alterando do século XVIII até os nossos dias. Este processo de mudança obedeceu à lógica do razoável que caracteriza o paradigma da Filosofia do Direito e tinha como objetivo, na interação entre governantes e governados, ensejar a governabilidade, respondendo à percepção de novas realidades históricas. Dessa maneira, como se caminhou dos direitos humanos de primeira geração os direitos-garantia, de cunho individualista para os direitos de segunda geração os direitos de crédito, de feição social apontando que, se existem conflitos entre esses direitos, sobretudo em matéria de tutela e da concepção do papel do Estado, a complementaridade é superior ao conflito para uma lógica do razoável(LAFER,1988, p. 25).
Na reflexão proposta por Lafer (1988), fica claro que, os refugiados e apátridas, aqueles que foram expulsos datríade” Povo-Estado-Território”. Assinalam, com a emergência do totalitarismo, o ponto de ruptura. A medida em que os refugiados e apátridas não receberam os benefícios do princípio da legalidade, e não puderam valer-se dos direitos humanos, assim como não encontraram lugar num mundo, inteiramente organizado e ocupado politicamente, tornaram-se efetivamente supérfluos, porque indesejáveis acabaram encontrando o seu destino nos campos de concentração. Daí a conclusão de Hannah Arendt, calcada na realidade das displacedpersons e na experiência do totalitarismo, de, que a cidadania é o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direitos dos seres humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso ao espaço público. É este acesso ao espaço público que permite a construção de um mun.do comum através do processo de asserção dos direitos humanos.
Neste sentido, a reflexão arendtiana em The OríginsofTotalitarianism mostra a inadequação da tradição, pois os direitos humanos pressupõem a cidadania não apenas como um meio,o que já seria paradoxal, pois seria o artifício contingente da cidadania a condição necessária para assegurar um princípio universal, mas como um princípio substantivo, vale dizer: o ser humano, privado de seu estatuto político, na medida em que é apenas um ser humano, perde as suas qualidades substanciais, ou seja, a possibilidade de ser tratado pelos outros como um semelhante, num mundo compartilhado.
Destituir alguém de sua cidadania é tendencialmente expulsá-lo do mundo, tornando-o supérfluo e descartável, conforme revelou a experiência totalitária. Problema dos seres humanos supérfluos e como tais encarados, posto pela experiência totalitária e juridicamente ensejado pela privação da cidadania, criou as condições para o genocídio, na medida em que foram levados, por falta de um lugar no mundo, aos campos de concentração.
O genocídio não é um crime contra um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. É um crime que ocorre, lógica e praticamente, acima das nações e dos Estados das comunidades políticas. Diz respeito ao mundo como um todo. É, portanto, um crime contra a humanidade que assinala, pelo seu ineditismo, a especificidade da ruptura totalitária. Assim, na sequência da análise examino como, no segundo pós-guerra, a ruptura totalitária levou à afirmação de um Direito Internacional Penal, que procura tutelar interesses e valores de escopo universal, cuja salvaguarda é fundamental para a sobrevivência não apenas de comunidades nacionais, de grupos étnicos, raciais ou religiosos, mas da própria comunidade internacional. Entre estes valores e interesses está a repressão ao genocídio (LAFER,1988, p. 25).
A reciprocidade de direitos e deveres na interação entre governantes e governados, que não existindo enseja o direito de revolução. O direito de resistência foi inicialmente consagrado nas Declarações do século XVIII mas desapareceu posteriormente do Direito Positivo, pois a expectativa, contemplada pelo paradigma, era no sentido de que a positivação, pelo Direito Constitucional, de importantes instrumentos destinados a evitar o abuso do poder seria suficiente para impedir a opressão.
Essa afirmação de autoevidência, crucial para os direitoshumanos mesmo nos dias de hoje, dá origem a um paradoxo: se aigualdade dos direitos é tão autoevidente, por que essa afirmaçãotinha de ser feita e por que só era feita em tempos e lugares específicos?Como podem os direitos humanos ser universais se não sãouniversalmente reconhecidos? (HUNT, 2009, p. 19).
Assim fica evidente que é preciso rediscutir as bases que estão ancoradas as práticas atuais de Direitos Humanos. Uma vez que este não pode ser um documento apenas de boa-vontade, mas preciso ser um título de auto execução. Que dá garantias reais aos imigrantes, que são forçados a sair de sua terra, e ficam à mercê “da boa vontade” dos governos que os recebem. Mas sem garantias reais.
A Fé é os Direitos Humanos
Como foi discutido anteriormente, fica claro que infelizmente a proteção dos refugiados em relação aos direitos humanos possui grandes fragilidades no âmbito mundial.
No Brasil percebemos que existe uma politica que busca dar pertencimento aos refugiados. Mas de forma mais importante é preciso ressaltar que o papel da fé é extremamente relevante no sentido de que é por meio da fé e das instituições cristãs e que muitos dos refugiados são acolhidos. Esse papel é de extrema importância.
No contexto político são estas instituições, que realizam um papel de combate no âmbito público, buscando recursos, politicas e ações que possa dar dignidade aos refugiados. Como acesso a educação e empregos. Além disso estas instituições também fazem o acolhimento espiritual dando conforto e alento a todos os que vagueiam pelo mundo, desapropriados da sua terra natal, de seus bens, cultura e muitas vezes até de sua família. Assim o papel e de extrema importância para que esses refugiados possam estabelecer laços fraternos nos países em que são acolhidos. E esse é um papel muito importante que as igrejas cristãs realizam pelo mundo. Obedecendo o mandamento de Cristo:
E quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os santos anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória;
E todas as nações serão reunidas diante dele, e apartará uns dos outros, como o pastor aparta dos bodes as ovelhas;
E porá as ovelhas à sua direita, mas os bodes à esquerda.
Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo;
Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me…(BIBLIA SAGRADA,
Mateus 25:31-35).
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019), 7,4 milhões de pessoas já realizaram algum tipo de trabalho voluntário, o equivalente a 4,4% da população. Assim percebemos que a fé tem um importante papel no acolhimento e no seu posicionamento social e politico em defesa das minorias.
Considerações Finais
Conclui-se que os dados sobre migração são alarmantes, pois na atualidade um fluxo grande de pessoas está em trânsito pelo planeta. E que historicamente o Brasil sempre foi muito receptível aos imigrantes, que aqui deitaram suas raízes. No entanto é preciso retomar a grande discussão do século XX, sobre os apátridas, sobre os paradigmas da não cidadania e a falta de direitos mínimos. Sobre a falta de políticas públicas e recursos. E finalmente sobre o ódio e o desrespeito a diversidade cultural, linguística, étnica e religiosa. Para que os homens não sejam considerados supérfluos, a margem e horror do mal banal e do totalitarismo venha novamente se repetir no século XXI.
Referencias
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BRASIL. Ministério da Justiça. Refúgio. 2018. Disponível em file:///C:/Users/Computador/Downloads/RefgioemNmeros_2018%20(1).pdf: Acesso em: 15 de novembro de 2018.
OIM. Organização Internacional para as Migrações. Direito Internacional da Migração: Glossário sobre Migração. Nº 22. 2019. Disponível em: << http://www.acidi.gov.pt/_cf/102363>>. Acesso em: 12 dezembro. 2019.
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UNODC.United Nations Office ondrugsand crime. Comigrar reúne 788 pessoas para discutir Política Nacional de Migrações e Refúgio. Disponível em:< http://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/frontpage/2014/06/03-comigrar-reune-788-pessoas-paradiscutir-politica-nacional-de-migracoes-e-refugio.html>>.Acesso em 24 ago. 2014.
Outras Fontes:
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), 2017.
Organização das Nações Unidas (ONU), 2019.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019).
Polícia Federal (2019).
[1]Ensayo presentando enel Concurso de ensayos académicos sobre Fe y Derechos Humanos denominado: «Monseñor Carlos Parteli y Pastor Emilio Castro».
[2]Pós-Doutora em Educação. Doutora em Educação. Mestre em Ecologia e Produção Sustentável. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás PUC Goiás.
[3]Doutor em Educação – Universid Americana. Mestre em Educação pela Universid de Los Pueblos de Europa. Graduado em Administração-FAIARA, Filosofia – FAEME, Teologia – FATEBOV.
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