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Passados vinte e sete anos da promulgação da Constituição Federal (1988), ainda há muito o que fazer no sentido de efetivar os direitos e garantias nela contidos e aprofundar a tão jovem democracia brasileira. O Brasil avançou de modo considerável nos últimos anos, mais especificamente nos governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores (PT), que subiu ao poder a partir do ano de 2002. Eles se notabilizaram pelos esforços em prol da inclusão social.

A despeito dos casos envolvendo corrupção no governo, não se pode menosprezar duas importantes marcas das últimas gestões: a extinção da miséria e a mitigação da pobreza. Não obstante, há aproximadamente quatro anos temos assistido o recrudescimento de movimentos conservadores. O que tem posto em risco as – já pequenas – conquistas nas áreas de justiça social, direitos LGBT, direitos das mulheres, etc.

Daí em diante, pôde-se assistir desde a tentativa de alteração do artigo 1, § 1 da Constituição (que afirma “todo poder emana do povo e em nome do povo é exercido”) para “todo poder emana de Deus, e em nome de Deus é exercido” ao recente avanço do Estatuto da Família, no Congresso Nacional. Paralelamente a esses acontecimentos, discutia-se em diversos municípios brasileiros a elaboração dos Planos Municipais de Educação, que deveriam seguir o modelo do Plano Nacional de Educação.

O que se viu nessas discussões, simplesmente, foi um show de horrores. O embate entre grupos progressistas, LGBTs, feministas, dentre outros, e grupos religiosos não se deu sem terríveis agressões – muitas vezes de ambas as partes. Jovens pertencentes a Renovação Carismática da Igreja Católica, atuando conjuntamente com evangélicos de diversas denominações, compareceram em peso em diversas Câmaras Municipais. Pessoas empunhando crucifixos, alçando palavras de ordem (e também ofensas), cartazes vinculando homossexualidade à pedofilia e à promiscuidade, resultaram na danosa restrição dos debates à discussão a respeito da igualdade de gênero (que, para os conservadores, tratava-se pura e simplesmente de uma “ideologia de” gênero com vistas a perverter “nossas crianças”).

Saldo final da batalha: não apenas se deu importância mínima a outros temas que constavam no Plano, como também, na maioria dos casos, os religiosos lograram limitar ou extinguir do documento as metas que enfatizavam a necessidade de se debater abertamente em todas as instituições de ensino (nos mais diversos graus de aprendizagem) o tema da diversidade sexual e questões envolvendo gênero. Constituídos de evangélicos e católicos carismáticos, esses religiosos se articularam e se mobilizaram a fim de excluir as palavras “diversidade” e “pluralidade” mesmo em metas cujo conteúdo nada tinha a ver com as questões de gênero e sexualidade, supostamente para que não ficassem abertas brechas para a discussão destes temas.

Ao que tudo indica, quanto mais visibilidade midiática para esses embates, mais os conservadores angariam apoio de boa parte da população. O que revela o caráter tradicionalista do povo brasileiro, nossas intolerâncias e também preconceitos. Retornando ao Estatuto da Família, este documento busca definir o conceito de família, a saber: a união entre homem e mulher, com possibilidade de filhos. O projeto seguiu com êxito na comissão especial que o analisava, com amplo apoio de parlamentares com estreita e aberta vinculação a igrejas evangélicas e catolicismo carismático. Em breve, será discutido no Senado Federal. Um dos parlamentares contrários às intenções do referido Estatuto sugeriu, de maneira irônica, “seria mais fácil substituir a Constituição pela Bíblia”.

Nisso, assistimos ao Estado, que não deveria jamais definir o conceito de família, visto que se trata de algo cultural, portanto relativo e sujeito a mudanças, complexo e muitas vezes de caráter subjetivo, tentando definir aquilo que, na prática, cada cidadão, cada agrupamento, é que deve definir em sua relação subjetiva com as coletividades. Ironicamente, os mesmos que levantam tal bandeira, são aqueles que propalam em alto e bom som a necessidade de um Estado Mínimo, que interfira quanto menos na vida da sociedade civil. Bem, logo se vê que isso deve se restringir apenas àquilo que mais lhes convém.

Fato é, pautas conservadoras, quando não encontram apoio popular, não contam também com sua atenção. O que viabiliza que, com apoio de suas denominações religiosas, alguns parlamentares “justifiquem” seus mandados, isto é, mostrem o sentido/razão de ser de suas legislaturas: estão ali em nome da religião. O que está em jogo nesse cenário é o Princípio da Laicidade, que, evidentemente, mostra-se fundamental para sustentar a harmonia entre os mais diversos grupos existentes na sociedade. Pode-se dizer, grosso modo, que uma série de direitos entendidos como fundamentais encontram seu suporte neste princípio basilar.

Portanto, urge debater o tema do Estado Laico, urge, quanto antes, garantir que o Estado medie as relações entre os diferentes a fim de que convivam entre si, podendo até mesmo concorrer entre si, sem que um imponha a outros os seus valores legislando religião. O Estado não deve dizer o que é família, o que é moral ou não em termos sexuais, não deve normatizar acerca da devoção alheia nem sobre a ausência dela, deve apenas acolher e resguardar aquilo que, devido as complexas e constantes interações sociais, passa a ser realidade concreta (redundante!), desde que não fira os direitos de outrem.

Humberto Ramos de Oliveira Jr

Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas, mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo. Possui interesse de pesquisa nas áreas relacionadas a Religião, Laicidade e Direitos Humanos. Tem atuado profissionalmente como coordenador de Abordagem Social no Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Limeira/São Paulo.