Humberto Ramos.
Há 47 anos atrás Peter Berger daria à sua obra de sociologia da religião o nome The Sacred Canopy, em português O Dossel Sagrado. Uma escolha criativa, bastante acertada. Dossel é um tipo de ornamento que recobre mobiliários como tronos, altares, liteiras ou camas. Trata-se de uma espécie de véu, ou outro tipo de tecido, uma cobertura, que abarca ou envolve algo. Nesta obra, o sociólogo austro-americano aborda, dentre outras coisas, a potencialidade da religião para legitimar a ordem social.
Para se falar apenas na história do ocidente, a religião forneceu, até pouco tempo, as condições para a manutenção eficaz da engenharia social. Com o processo de secularização, perdeu espaço tanto na dimensão subjetiva quanto objetiva. Ou seja, a religião perdeu o poder de conduzir a vida social em sua totalidade, tendo sido restringido seu potencial de legitimar os rumos (especialmente os rumos políticos) das sociedades. Em outras palavras, conforme mostra Max Weber, o ocidente experimentou a dessacralização do direito. Assim, não mais a religião, mas a lei orienta a vida social.
Ora, a religião não desapareceu, como gostariam alguns e como ousaram vaticinar outros. Permaneceu, adaptou-se às novas condições. E aqui, ao dizer religião, vale clarear, trata-se da religião cristã. Esta que, para além de permanecer, seguiu (e segue) disputando espaços na sociedade, a fim de reavê-los. O que Berger chama de “modelo de reconquista”.
Esse esforço para disputar espaços e reconquistá-los se mostra auspicioso especialmente em tempos de instabilidade social, crise de valores, anomia. Em tempos assim, tempos em que geralmente os profissionais da política encontram dificuldade para se manterem no poder, a religião funciona como importante instrumento de legitimação do poder, conferindo autoridade àqueles que o exercem, fornecendo-lhes liga para sustentar a engrenagem social.
No Brasil, há tempos os evangélicos têm expressado seu projeto de poder. Um projeto que acompanha sua trajetória histórica. De grupo minoritário e perseguido à grupo hegemônico. Não se tornaram maioria entre a população brasileira, no entanto converteram-se em grupo com relevante representação política. Então, além de preeminência numérica entre os parlamentares, têm se mostrado coesos. O que obviamente lhes confere grande poder de influência e atuação.
Como é sabido, o Brasil passa por um delicado momento político. A presidenta Dilma Rousseff sofre um processo de Impeachment e encontra-se afastada. Entre os grupos que mais investiram suas forças nesse processo estão os evangélicos da Frente Parlamentar Evangélica. Sua atuação tem se mostrado incisiva, mas seu potencial de articulação e alianças pôde ser visto especialmente nos dias que se seguiram ao afastamento da presidenta e início da gestão do presidente interino Michel Temer (PMDB). Na verdade, pouco antes do afastamento de Dilma, o pastor Silas Malafaia, conhecido pelas suas posições homofóbicas e pela influência exercida sobre a bancada evangélica, esteve com o então vice-presidente Temer, abençoando sua vida para assumir a presidência da república. Logo após sua posse, Malafaia também pôde conceder-lhe suas orações. Além disso, nas redes sociais parte da população evangélica se declarava aliviada pelo fim de uma gestão que se empenhava em corromper os valores da família tradicional. O próprio Michel Temer, em seu discurso de posse, discorreu sobre a suposta origem da palavra religião e afirmou: “O que queremos fazer agora com o Brasil é um ato religioso, um ato de religação de toda a sociedade brasileira com os valores fundamentais do nosso país”.
Ora, todo o processo envolvendo o Impeachment se mostra bastante complexo. Não é o foco desta reflexão abordar essa questão em si. Portanto, basta afirmar que há pouca sustentação jurídico-política e social para o governo que “sucede” a presidenta Dilma. Assim sendo, não contando com o voto popular (não se trata de um governo eleito), tendo sido articulado por um congresso nacional que figura entre os mais corruptos já visto, liderado por uma figura política sem qualquer carisma (Temer, até então apenas vice-presidente), faz-se necessário recorrer à religião como fonte de legitimação.
Uma outra vez mais essa estratégia se mostra eficaz. O político discreto, que já fora acusado pelos próprios evangélicos de ser satanista, hoje acena a eles – aos cristãos em geral –, que, por sua vez, depositam nele a expectativa de uma nova era no Brasil. Uma era em que o Ministro da Ciência e Tecnologia é um bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, em que se sinaliza que os debates acerca da diversidade sexual serão banidos das políticas do Ministério da Educação e em que os Ministérios da Cultura e Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos Humanos fora extintos. Detalhe, com louvor por parte de grupos religiosos conservadores.
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